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Da mão-de-Buda ao limão Lisboa, passando pela lima de Rangpur e a toranja ouro branco - há mais de 200 variedades de citrinos produzidos em Portugal, e o chef da Fortaleza do Guincho mostrou o que se pode fazer com cada um deles.
A mesa de jantar na sala da Fortaleza do Guincho tem uma longa fila do que, à vista desarmada, parecem ser laranjas e limões. Mas quando olhamos melhor começamos a aperceber-nos das diferenças de tamanhos e cores – alguns parecem miniaturas de laranjas, outros gigantescos limões disformes. Durante o jantar – a Sinfonia de Citrinos, preparada pelo chef Vincent Farges – vamos perceber também que este mundo não é apenas de cores e formas, é de cheiros e sabores.
Vincent sempre gostou de trabalhar com citrinos. Mas não imaginara que um dia teria à sua disposição em Portugal esta imensa variedade. Tudo começou depois de ter conhecido um produtor do Alentejo que é, como ele, um apaixonado por tudo o que é cítrico. Vincent partiu para a propriedade e perdeu-se entre as muitas árvores com os frutos mais variados. Raspou as cascas para sentir o cheiro, abriu-as para ver o interior, provou, comeu os fruto com casca, sem casca, com polpa, comeu até as folhas para saber quais teriam utilização culinária (fez, por exemplo, um azeite com as folhas da pêra cidra).
E depois escolheu uma parte das mais de 200 variedades que tinha à disposição e enfiou-se na sua cozinha na Fortaleza a fazer experiências. Foi aí que o encontrámos alguns dias antes do tal jantar. O menu já estava pensado, e Vincent dedicava-se às afinações finais. Mas teve tempo para nos dar uma aula sobre citrinos.
Veja-se por exemplo este pequeno, oval, de um verde um pouco escuro. Chamam-lhe o limão caviar e percebe-se porquê quando Vincent o abre ao meio e mostra que o interior se desfaz em pequenas bolinhas. "Para quê fazer esferificações?", pergunta o chef. O limão caviar é uma esferificação natural. Faz parte da família das limas selvagens australianas que crescem em arbustos espinhosos na Austrália ou na Papua. É uma fruta do Pacífico, mas, como se prova aqui, dá-se bem com o clima de Portugal.
Aliás, os citrinos – como se prova também pelas mais de 200 espécies que crescem hoje no Alentejo – sempre se deram bem em Portugal. Conta um pequeno livrinho que a Fortaleza do Guincho fez para acompanhar a refeição que as limas mediterrânicas foram classificadas no século XVIII em Montemor-o-Novo como o melhor fruto do reino português.
É difícil traçar com exactidão a história dos citrinos, mas sabe-se que vieram originalmente do Sudeste asiático e que se espalharam primeiro pela China e depois pelo Médio Oriente, o Mediterrâneo, e, muito mais tarde, chegaram à América, onde a Califórnia é hoje um dos grandes produtores mundiais. Mas, durante séculos, o que existia era essencialmente a laranja amarga, fruto mais usado pelo seu cheiro perfumado do que pelo gosto.
Conta-se que terão sido os portugueses a trazer a laranja doce para a Europa – daí que, em árabe, a palavra laranja tenha um som parecido com a palavra portugal. E há também o chamado limão Lisboa, que terá estado na origem das variedades comerciais de limão.
O facto é que os citrinos se espalharam rapidamente pelo mundo e surgiram centenas de híbridos e variedades. Vincent Farges, que conhece bem Marrocos, já tinha tido ocasião de aprender como é que os citrinos são usados na cozinha do Norte de África, por exemplo, que terá também influenciado Portugal. Mas esta história de influências mútuas é um novelo que dificilmente conseguiremos desenrolar, por isso o melhor é olhar para os frutos que Vincent nos mostra e aprender mais coisas.
O mais vistoso é, sem dúvida, a mão-de-Buda, com os seus dedos amarelos espetados. Raro, chega a custar 50 euros a peça em França, conta Vincent. Não se sabe por que se desenvolveu assim, mas sabe-se que não tem sumo, o interior é unicamente polpa, o que, na opinião do chef, não impede de forma nenhuma a sua utilização. Há muito que se pode fazer com as polpas mais carnudas de alguns citrinos, o importante é perceber a consistência delas e usar apenas as que são firmes, evitando as esponjosas.
“Estes são só alguns, ainda vão chegar mais”, diz Vincent, sorridente, apresentando um limequat, um híbrido entre a lima e o kumquat (estes são pequenos frutos com sumo azedo mas casca doce e fina, que podem ser comidos directamente da árvore, com casca, e que, segundo o livrinho da Fortaleza, dão-se muito bem em Portugal, onde o Inverno ameno ajuda a uma maturação perfeita). Os kumquat hão-de aparecer mesmo no final do jantar, a acompanhar os chocolates.
Depois há os híbridos japoneses que também crescem bem em Portugal. É o caso do yuzu, um limão asiático com sabor a tangerina que Vincent utiliza frequentemente, ou o sudachi e o kabosu, que combinam muito bem com peixe ou carne de porco grelhada. E ainda a extraordinária lima kaffir ou combava, muito verde e enrugada, como um pequeno cérebro de extraterrestre. Vincent vai usá-la numa das entradas do jantar: lingueirão da Ria Formosa, caldo perfumado com combava. Na mesma linha de cruzamento entre sabores do mar e citrinos, apresenta ostras da Ria Formosa na sua água perfumada com bergamota.
E a bergamota é um caso especial. De todos os citrinos que provámos na cozinha da Fortaleza (e depois no jantar), a bergamota é aquele que melhor reconhecemos pelo perfume extraordinário que tem (é, aliás, usada para água de colónia e para o chá Earl Grey). Apesar de ser um híbrido famoso, foi produzido apenas na Calábria, em Itália, e só recentemente passou a ser produzido em Portugal, que hoje é o único país mediterrânico, para além de Itália, a ter bergamotas em campo aberto. “É muito rico em óleos essenciais”, sublinha Vincent, explicando que esses óleos estão nas cascas.
E continuamos a viagem pelo jardim dos citrinos. Há ali um que parece uma clementina mas é uma lima de Rangpur, indiana – Vincent usa-a para marinar as vieiras, que vai servir com um puré de funcho com citronela. Do cruzamento desta lima de Rangpur com a japonesa scheekwasha surge um híbrido, a pursha, que é geralmente utilizado verde em bebidas alcoólicas ou sobre peixe grelhado.
E aparece a toranja, a que chamam ouro branco da Califórnia – essa chegará na sobremesa, ao lado da star ruby com a sua polpa rosa, servidas com um creme glacé de Cointreau. Da família dos pomelos (que não devem ser confundidos com o híbrido americano que é a toranja) vem o butan hirado, um fruto grande e pesado, de tal forma que a árvore de onde veio só deu dois. E temos ainda a quimera de laranja, um híbrido entre o limão e a laranja, amarelo por fora, laranja por dentro.
E tantos, tantos outros que já não conseguimos tomar nota e tentar encontrar palavras para descrever as subtis diferenças de sabor. No jantar – que será todo acompanhado pelos vinhos algarvios da Quinta do Barranco Longo, um dos quais feito propositadamente para a ocasião – Vincent mostrará a arte de combinar cada um destes sabores com ingredientes diferentes, do lavagante assado com pomelos Chandler ao filete de peixe-galo assado com folhas de limão Maçã de Adão (que pode ser o citrino mais antigo de que há registo), puré leve de mão-de-buda, raiz de cerefólio salteado e limão amalfitano assado. No final, saímos a mordiscar um kumquat.
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Fonte do texto: Jornal Público on-line