sábado, 4 de julho de 2009

4 - FLORESTA DO BUÇACO


«Há nesse Buçaco vegetal, de águas correntes e silêncios povoados de vida, a impenetrabilidade de uma floresta secular. Falam aí as árvores uma linguagem muda que ensina o homem a sentir-se ao mesmo tempo grande e pequeno: grande perante a mesquinhez do mundo, e pequeno perante o vasto universo rico de harmonia profunda.



Neste Buçaco, que começa a mostrar-se pela madrugada, que se esconde nos recantos da mata às horas da vida civil, para reaparecer ao fim do dia; neste Buçaco, quem procura bulício não o encontra; quem busca estonteamento febril sente cair-lhe sobre os ombros a mão fraterna e máscula de um silêncio que faz meditar.



O ar fino, as águas sussurrantes, a sombra e a fresquidão, o rumorejar do arvoredo - tudo lá se pode encontrar, com algo mais que não é do plano das coisas tangíveis e que é «o espírito da mata» - uma vaga cumplicidade ambiente, que envolve e domina. Essa «cumplicidade» acolhedora, que é íntima paz, confunde-se com um feliz esquecimento, porque é onde os séculos estão datados pela idade dos muros e das árvores que se tem a impressão de que o tempo não conta, se desvanece dentro de nós e é como se nunca tivesse existido.



Quem na frescura da mata, no mais cerrado do bosque, ou sob a catedral dos cedros gigantescos, deixa cair sobre si o manto do entardecer, - sente-se penetrado de toda a riqueza de poesia que se oculta na floresta sagrada, onde os monges, outrora, acharam lugar de purificação.



Quando trazemos da cidade nos olhos, nos ouvidos e no cérebro - em tensão de lutas ou em tédio corrosivo - morre ali no ramalhar das árvores, no sussurro das fontes e no silêncio dos recessos mais umbrosos e esquecidos. À parte os monumentos místicos, que sugerem maceração, disciplinas e cilícios, os rigores, enfim, do cenóbio e da vida eremítica, remanesce ainda o que quer que seja que ilustra o combate ao demónio interior pela abjuração espontânea do mundo.



Depois de se passarem algumas horas nesse outro Buçaco, parece natural que lá se tivesse vivido a vida inteira: é lugar repousante, onde o bater do coração tem novo ritmo, mais a compasso com a natureza. O bosque frondoso propicia, mesmo a quem o não procure, um desensombramento da alma, que limpidamente aflui ao semblante.



Caminhar pela mata, pisando pequenas ruas atapetadas do fofo musgo, verde garrafa, ou verde queimado; parar de quando em quando, para ouvir com apurada atenção, o trilo das aves nas brenhas; - é possuir um pouco daquele encantamento fino e saboroso que os portadores das «sandálias penitentes» tão bem conheceram - ao longo de dois séculos. Quem divagar pelas veredas do Buçaco sem que sinta o apelo do silêncio e da plena quietação, quem percorra a floresta falando ou cantando, jamais há-de intuir a noção preciosa de que na cidade há «ruídos», mas só na floresta - sons.



Toda a magia das águas frescas e múrmureas, toda a sedução expressiva dos fios líquidos cantantes se encontra no Buçaco, povoado de fontes como a de Santo Elias, a de S. Silvestre, a de Santa Teresa, a da Samaritana e a do Carregal. São as águas que manam dessas bocas, e de humildes veios perdidos na devesa que fazem o viço duma flora variadíssima de 400 espécies nacionais e cerca de 300 exóticas, - riqueza botânica talvez sem par na Europa.»

Extracto de um texto escrito por F. Pinto Loureiro, publicado na revista PANORAMA - REVISTA PORTUGUESA DE ARTE E TURISMO, NÚMERO I, III Série, 1956.

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