Moçambique, 1952
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Nos Trópicos sem Le Corbusier, novo livro de Ana Vaz Milheiro, é retratada a arquitectura colonial pública, que junta técnicas essenciais às condições meteorológicas e elementos que remetem para a metrópole, conferindo aos edifícios uma certa portugalidade nos territórios ultramarinos.
Ana Vaz Milheiro reúne, neste livro, textos resultantes das suas investigações que começam no seu doutoramento, na Universidade de São Paulo, e que escreveu entre 2007 e 2011, para encontros internacionais ou conferências onde era oradora. “Muitos ficavam lá nas actas brasileiras e, às vezes, aqui não tinham circulação. Isto foi também um pouco para as pessoas poderem consultá-los”, disse crítica de arquitectura do PÚBLICO.
“É uma grande contribuição”, afirmou Mónica Junqueira de Camargo, sua amiga e professora na Universidade de São Paulo, na apresentação do livro que teve lugar no colóquio internacional "Portugal – Brasil – África: Urbanismo e Arquitectura", que decorreu na Universidade Autónoma de Lisboa: “Ana faz-nos aproximar dessa realidade [colónias ultramarinas] através da articulação entre os textos e as imagens”. Walter Rossa, autor do prefácio do livro, destacou a importância das colectâneas: para os autores que conseguem ordenar e até complementar algumas das suas ideias e para os universitários que têm uma base de estudo e textos que às vezes estão perdidos.
Como surge o interesse pela arquitectura colonial neste período específico, no Estado Novo?
Há muitos trabalhos na área da arquitectura moderna, tem-se valorizado a produção de matriz portuguesa, principalmente em África. E a arquitectura de representação nacional, aquela que está nos equipamentos públicos, nos hospitais, nos liceus, nas câmaras municipais, nos palácios do governo - por ser conotada com o poder colonial e com o poder político, tem-se olhado menos para ela.
Quando comecei a pensar estudar arquitectura africana, pareceu-me que era muito interessante começarmos por essa arquitectura de promoção pública. Porque a relação aqui é estabelecer uma afectividade entre o espaço que passa a ser também Portugal - deixa de ser colonial e passa a ser ultramarino, um Portugal fora da Europa - e Lisboa. Há uma necessidade de recordar que estamos em Portugal e a arquitectura sempre foi de regime, mesmo a arquitectura moderna, porque a arquitectura é sempre promovida por um regime político e, portanto, serve-o.
O outro ponto era perceber, mas só no decorrer do trabalho é que o compreendi, qual é que era a escala efectiva desta produção em termos de concretização, ou seja: Portugal nos anos 50 é um país subdesenvolvido, com imensos problemas internamente, basta ver o inquérito à arquitectura portuguesa que os arquitectos fazem em 54 para perceber que as imagens são de extrema pobreza, de miséria económica, social. E, como é que um país pobre, atrasado desenvolve, em paralelo, um esforço de instalação num território fora do seu perímetro, dentro de um quadro político internacional que lhe é hostil?
Portugal rural de Salazar é um Portugal que nas colónias se transforma num Portugal urbano. Os planos, as avenidas, os equipamentos: há uma espécie de projecto megalómano de que a arquitectura e o urbanismo são entidades catalisadoras. Isto também é uma experiência única, porque em 50 começam os processos de independência dos outros países e nós mantemos o nosso império colonial até 74. Nós temos uma experiência que não há nos outros países e nas outras potências colonizadoras, também isso é uma história completamente única e invulgar, uma vez mais idiossincrática como é a história portuguesa.
É muito difícil encontrar qualidades num edifício que tem um peso, que evoca um poder político e pouco favorável. Portanto, a história tinha passado completamente ao lado desses processos. Com isso, Angola e Moçambique eram muito estudados porque a arquitectura moderna é dominante. Os outros três países africanos ficavam de fora porque depois não têm essa produção moderna, só têm esta outra, ou têm-na em maior número.
Este trabalho permitiu perceber também que a evolução das culturas arquitectónicas na África que também fala português – se em Angola e Moçambique é de facto no sentido desse projecto moderno – em S. Tomé e Príncipe, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde vai ser no sentido de uma maior proximidade com a cultura metropolitana.
Como se desenrolou o processo desta narrativa?
A questão que me interessava era perceber como é que essa arquitectura surgia. Depois havia a felicidade de estes projectos estarem em Lisboa, porque estão no Arquivo Histórico Ultramarino, a maioria deles, outros no centro de documentação do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD) e portanto eu podia ter um primeiro acesso aos desenhos e aos projectos. Comecei por aí, em 2008: a abrir caixas, a ver os desenhos e depois comecei a pesquisar bibliografia, a ver na net, se os edifícios que estavam naqueles desenhos tinham sido concretizados e se ainda estavam em uso.
E depois é que começámos a estabelecer as autorias dos arquitectos. As pessoas diziam: “Palácio do governo de Bissau, quem fez?”, ninguém sabia. “Ah, é uma coisa do Gabinete de Urbanização Colonial”, mas quem efectivamente é que desenhou? O que nós chegámos à conclusão também é que este organismo que estava sediado em Lisboa e que fazia esta arquitectura de representação também tinha várias faces porque teve vários arquitectos e iam mudando, iam aplicando um pouco mais as suas ideias e não era uma produção tão homogénea como poderia parecer. Embora seja um sinal reconhecível, há uma familiaridade entre a produção que, depois com um olhar mais treinado, a gente já consegue, às vezes, reconhecer.
Os elementos da arquitectura moderna surgem por influência da experiência brasileira?
É inegável que o Brasil, ao fazer uma reconversão dos valores da arquitectura moderna de via corbusiana numa arquitectura adaptada aos trópicos, criou uma matriz que era muito fácil de reproduzir em ambientes de condições climatéricas idênticas. Mas a experiência não é só brasileira. Nós é que, como temos uma afectividade muito forte com o Brasil, tendemos a ler esses sinais brasileiros. Na verdade, quando se percorre um bocadinho mais a fundo, percebe-se que na cabeça destes arquitectos não é claro que seja brasileiro.
Um arquitecto moderno nunca admite uma influência porque a arquitectura, para ele, é técnica, não é expressão plástica. Ao admitir uma influência, estaria a admitir a presença de uma artisticidade. Com excepção do Castro Rodrigues, no Lobito, é muito difícil encontrar um arquitecto que diga: “é brasileiro” ou é outra coisa qualquer. Temos que ter um certo cuidado. Por um lado, porque eles obviamente recebem as coisas muito mais difusas do que imaginamos. Cabe ao historiador tentar encontrar grandes linhas de enquadramento e, nesse sentido, a presença da forte cultura brasileira na cultura internacional, como potência que já prefiguravam ser e como potência do movimento e da arquitectura moderna que são, coloca os holofotes nela própria. Mas é muito mais difuso do que isso até porque, nos documentos da época, não é muito fácil encontrar, com algumas excepções, uma admissão desse brasileirismo. Agora, estão lá as palas, as grelhas, está lá o Lúcio Costa [pioneiro da arquitectura moderna no Brasil].
Portugal estaria mais aberto a elementos da arquitectura moderna se não tivesse vivido o período do Estado Novo?
Uma vez o Adriano Moreira, numa entrevista que lhe fiz, sintetizou isto muito bem. Não é que houvesse uma cartilha que dissesse “isto tem que ser assim” mas havia um certo sentido que um edifício de representação tinha que ter, uma certa solenidade. Não é nenhuma cartilha, mas é uma consciência. Quando eu falava com os arquitectos dizia: “Mas vocês os arquitectos eram tão modernos nos outros edifícios que faziam, tão modernos nas plantas, depois o que acontecia nos alçados?” Um deles disse-me: “Oh Ana, a fachada não interessa, o que interessa é que a planta funcione, que a ventilação cruzada se dê e que a fachada fique suficientemente protegida do sol e da chuva. É isto que é projectar para os trópicos. Agora, se ela tem lá mais uns elementos ou não, isso é secundário”.
Eu hoje acredito que não [que a ditadura não limitou a arquitectura moderna]: havia arquitectos do regime que eram modernos e arquitectos anti-regime que eram conservadores. Penso que, eventualmente a partir dos anos 50, o regime era muito tolerante em relação às manifestações cá, em Portugal continental e menos lá, ao contrário do que se diz. Os edifícios que saíam daqui para lá eram menos historicistas do que os que eram feitos cá, nos organismos públicos. É comparar o Liceu D. Leonor com o antigo Liceu D. Guiomar de Lencastre, hoje Liceu Rainha Mingas, em Luanda. É ver estes dois edifícios - um produzido em 58, o outro em 56 - e perceber como o de cá é menos esquema mas é mais envidraçado, e não tem determinados elementos que o de lá vai ter.
É muito difícil dizermos que Portugal poderia ser muito mais tolerante arquitectonicamente se não tivéssemos tido uma ditadura, o que nós podemos dizer é que para alguns arquitectos o moderno era um programa político, isso está inscrito no ADN da revista Arquitectura, a partir 47: “ser moderno é um discurso ideológico político por um Portugal mais progressista” e, portanto, um Portugal não ditatorial. O que não significa que não houvesse arquitectos mais simpatizantes do regime que não fossem igualmente modernos. Agora, se teríamos sido mais modernos se não houvesse ditadura, não sei, é muito difícil dizer o que é que a história poderia ser se tivéssemos outra coisa qualquer.
As técnicas e materiais utilizados na arquitectura moderna, que eram adaptáveis ao clima dos trópicos, ainda são aplicadas hoje?
As técnicas usadas nos edifícios oficiais, desenvolvidos pelos “homens do gabinete”, como eu lhes chamo, são técnicas correntes que ainda hoje se aplicam em toda a parte do mundo. Os outros edifícios eram mais experimentais, os edifícios dos arquitectos modernos, aqueles que são mais celebrados pela historiografia e mais difíceis de reproduzir.
O que é muito interessante notar, no caso africano, é que os edifícios modernos, como são mais experimentais são menos resistentes ao tempo. Uma das coisas que estes homens eram obrigados, nos gabinetes oficiais, era a trabalhar com materiais que tivessem uma certa resistência porque estes edifícios iam ter pouca manutenção. Tanto que hoje em dia, em Portugal e em qualquer sítio do mundo, é muito mais difícil recuperar um edifício moderno, do séc. XX, do que um edifício antigo construído no séc. XV. O edifício do séc. XV é pedra, tijolo, argamassa e pouco mais. O edifício moderno tem inclusivamente materiais industriais que já não existem disponíveis, porque já não são produzidos e é muito mais difícil mantê-los.
Mas é necessário, quando se constrói nesses territórios, ter sempre em conta o clima...
É evidente: o clima, a ventilação, a chuva, tudo isso eram princípios que eles aprendiam, a tal “arquitectura tropical”. Aliás, o Marcelo Caetano quando cria o Gabinete de Urbanização Colonial, em 1944, ele quer criar uma escola, um laboratório de arquitectura tropical, ele só não sabe exactamente o que será mas quer que haja um aprofundamento dessas técnicas arquitectónicas, para a construção ser mais eficaz.
Por exemplo, eles não podiam usar o ar condicionado porque não lhes interessava: existia mas não lhes interessava porque era muito caro manter, os próprios edifícios tinham que ser autónomos em relação a ventilação. Essas eram técnicas com as quais eles trabalhavam permanentemente na execução desses edifícios, quer se fizesse moderno quer se fizesse menos moderno: a ventilação, o ensombramento das fachadas, o desaproximar o edifício do solo, etc.
A nível arquitectónico, quais são as diferenças entre a “casa portuguesa” e a “casa portuguesa ultramarina”?
O que se pretendia com essas casas desenhadas para os colonos (homens, mulheres, famílias), que vinham do meio rural português e que iam para um meio rural africano era dar referências que elas reconhecessem. Como Mário de Oliveira dizia: “não se podia desenraizar as pessoas totalmente de tudo”. O que os arquitectos nos anos 50 procuram é transformar aquilo que eram características que eles achavam que eram da arquitectura popular portuguesa - reconhecíveis por essas pessoas e comunidades - em características dos trópicos, que servissem as questões do clima: ventilação, ensombramento, etc. O alpendre ficava maior, as ventilações eram feitas mas o essencial da casa mantinha-se: uma casa portuguesa que eles chamavam 'casa portuguesa ultramarina'.
Por exemplo, tudo o que é construído no Colonato da Cela [Angola], que é um empreendimento absolutamente incrível, para o Conene [também Angola] e para o Limpopo, em Moçambique, foram experiências de uma casa tradicional à portuguesa mas em que esses temas da portugalidade foram adaptados aos trópicos.
É criticável, porque é que eles não trabalhavam com temas africanos? Porque as populações eram europeias. Porque quando estes mesmos arquitectos vão trabalhar para os africanos vão tentar incorporar elementos da arquitectura tradicional africana. Isso é que nós não sabíamos e este trabalho prova que isso é verdade.
Como é feita essa adaptação à cultura africana?
A casa é um elemento civilizador e, eles sabiam, não se pode passar de uma cobata [casa tradicional africana] para o apartamento, tem que haver uma transição. E quando eles vão trabalhar com estas populações africanas, procuram compreender: fazem levantamentos sobre as várias casas africanas, os materiais, a organização da família. Como os arquitectos modernos trabalham com os valores da localidade, estes arquitectos do Estado Novo também têm essa preocupação, porque sabiam que não havia outra maneira de fazer, até porque era impossível produzir habitação para toda a população africana.
Eles tinham que, primeiro, mudar a planta, trabalhar com os sistemas construtivos que os africanos conheciam, para serem eles a construir em sistemas de auto-construção. Há alguns casos de empreendimentos para as populações africanas que são desenhados de raiz, mas depois acabam por não ser tantos quando se percebe que é impossível dar resposta a todas as necessidades.
Quais são essas características da casa tradicional africana que os arquitectos portugueses exploram?
Há uma frase de Mário de Oliveira, num artigo escrito em 1965, que penso que elucida a questão:"O urbanista de hoje, para ser autêntico, deve partir do princípio profundamente humano de que uma cidade não são apenas as casas, ruas, avenidas, praças, etc., antes a comunidade que nela vive e convive, com os seus diversos grupos, suas instituições, seu modo de viver, suas tradições e seus costumes."
O mais importante era respeitar a organização social e familiar do habitante africano - melhorar a casa tradicional através de alterações funcionais da planta. As técnicas e materiais construtivos deveriam ser os conhecidos pelos povos africanos de modo a que estes pudessem construir - em sistema de auto-construção - as suas habitações. Respeitavam-se ainda os lugares dos assentamentos populares por serem considerados os melhores face ao clima, ventos, etc.
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Fonte: Jornal Público on-line, por Diana Teixeira, 24 Dez. 2012.